quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

ENVELHECER, A ARTE!

TOSHIKO ISHII

Nasceu em Kyoto, no Japão em 17 de janeiro de 1911.
Ceramista autodidata.
Transferiu-se para o Brasil em 1931,
vindo morar em Minas Gerais em 1970,
onde começou sua atividade com cerâmica.

Inverno de 2005, Junho!

Ouvíramos falar de Toshico,
Sua arte, sua beleza, a mulher forte e tenaz.
Sabíamos da sua fragilidade física,
Da idade avançada.
Queríamos conhecê-la,
E partimos para Minas Gerais.
Visitar Toshico, conhecer sua cerâmica, sua obra,
Certamente mudou nosso olhar. (Fotos na próxima postagem)

Em 2007, morre Toshico!


Aprendizes da humildade e da beleza
OLHAR

A artista japonesa Toshiko Ishii viveu no Brasil por várias décadas,
deixando marcas na arte da cerâmica e da convivência humana
Em 30 de julho, a arte perdeu uma de suas figuras humanas mais admiráveis.
A pequena Toshiko Ishii, ceramista dona de técnica milenar,
depois de muitas décadas vivendo no Brasil, morreu aos 96 anos.
Discreta como sempre foi, apenas amigos próximos
acompanharam os últimos momentos da artista.
Além de peças de beleza única, Toshiko foi mestre de uma geração de artistas mineiros.
Em Piedade do Paraopeba, na região de Brumadinho,
Toshiko montou seu ateliê em meio às montanhas, pedras e plantas.
Toda a matéria de sua arte, todas as cores de suas peças,
toda a motivação de sua vida se dispunham à sua volta.
Toshiko trazia para a cerâmica a memória de sua gente,
as lições de seus mestres (ela conviveu com a artista Tomie Ohtake em Kioto)
e a ética exemplar de não separar a utilidade da beleza.
Em busca de suas lições, como seguindo uma tradição mística,
vários artistas seguiram seu exemplo e, num tropismo esteticamente orientado,
trataram de montar ateliês na vizinhança de Toshiko.
Foi assim que as ceramistas Inês Antonini, Erli Fantini e Adel Souki
se estabeleceram nas curvas das mesmas serras,
sob a luz do mesmo horizonte, para aprender com o ritmo das mãos de Toshiko.
Não se tratava de uma comunidade acadêmica, mas de um falanstério artístico.
As ceramistas procuraram estar perto de Toshiko,
que chegou à região em meados dos anos 1970.
Até o fim da vida, a artista nipo-brasileira falava português com dificuldade.
A comunicação, como em suas peças, se dava de alma para alma.
A proximidade com Toshiko traduzia outra via para o ensino: a ética dos mestres.
Em Grande sertão veredas, Guimarães Rosa escreveu que mestre
não é o que ensina, mas o que, de repente, aprende.
Ensinar, de certa maneira, é exercitar a dúvida em companhia de pessoas próximas.
O ensino só é possível para quem se dispõe a aprender.
A arte pedagógica de Toshiko se dava a partir dos elementos da natureza, como o barro.
Sua mestria era dar voz ao fogo.
A técnica de Toshiko exigia um forno tradicional japonês,
aparentemente frágil, mas capaz de chegar a 1.300 graus.
A alta temperatura exige atenção e cuidado.
O forno precisa ser alimentado com método e carinho.
A queima, que pode durar muitos dias, colocava a frágil Toshiko em guarda,
com suas colaboradoras, em torno dos caprichos dos elementos.
Imaginar a cerimônia de moldar as peças, escolher os pigmentos,
acender o fogo e tratá-lo como a uma criança,
aguardar a passagem das horas e se abrir à expectativa do resultado final
é entender um pouco da transmissão da arte de Toshiko.
Ela fabricava beleza como quem ensina ao mundo que é preciso tempo.
Ela ninava o tempo com zelo, como quem sabe que a beleza dá sentido à existência.
No trabalho de Toshiko, nada se perdia.
Suas obras trazem inclusive a marca das cinzas
que se desprendiam da lenha, criando texturas.
Era algo não controlável, como as cores que daí brotavam.
A artista era mestra do ofício da cerâmica
e por isso humilde a seus caprichos.
O que acrescentava de seu ao material era a humildade.
A atitude de suas alunas, que mudaram de vida
para compartilhar a proximidade com a mestra,
não deixa de ser uma de suas obras mais importantes.
A marca de Toshiko, mais que a matéria de que são feitos seus objetos,
está na sensibilidade que ela desenvolveu em torno de seu exemplo.
O calor de sua experiência moldou outros caminhos artísticos.
A arte existe, também, para criar mais arte.
Passamos todos nós a vida em busca de exemplos.
Quase sempre trocamos a rica experiência da proximidade com pessoas excelentes
pelo prazer da fruição de resultados de pessoas eficientes.
Somos escravos do sucesso.
A tradução da vida bem realizada em torno de índices materiais se tornou um absoluto,
um triste equívoco existencial.
Quase sempre os mestres não deixam nada que justifique sua vida.
Alguns livros, umas poucas peças de barro queimado, poemas e discípulos.
Quem não entende a beleza da vida consagrada ao aprendizado
jamais vai se emocionar ao ler Aristóteles confessar que sua vida
podia ser resumida assim: %u201CNasceu, trabalhou, morreu%u201D.
Os dois limites da vida são sempre solitários.
É no meio que se desenha nossa maior possibilidade de humanização:
somos seres para o outro, para a aprendizagem, para o compartilhamento.
Viver deve significar exatamente isto: o projeto de ser com o outro, a sede de comunhão.
Há muitos caminhos ensinados pela história.
Alguns deles dividem os homens em grupos
donos de verdades que não se misturam e geram ódios.
Outros parecem sorver a inclusividade como destino maior da nossa espécie.
O sentimento de fraternidade é o limite máximo
de nosso processo de construção como seres humanos.
Se a religião e a política parecem se nutrir do primeiro elemento,
que divide em nome de uma síntese arbitrária,
a arte parece carregar o condão do segundo caminho,
pois tem como projeto vencer pela beleza.
Toshiko foi aos elementos mais duros
e à tradição mais arcaica para reescrever essa história.
No caminho encontrou alunas e pessoas capazes de entender seu esforço,
respondendo à sua arte com a emoção e a seu ensinamento com a humildade.
João Paulo (Editor de Cultura/ Cunha)

QUEM?

— Ah! as primeiras flores, como são perfumadas!
E como em nós ressoa o murmúrio vibrante
Desse primeiro sim dos lábios bem-amados!
Paul Verlaine, in "Melancolia















terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

AMOR

Não há vida sem amor

"O amor e as suas variantes, o sucesso e o insucesso no amor,
a fidelidade e a infidelidade, são temas eternos.
O que muda é a forma de lidar com o sentimento amoroso"

O amor foi um dos grandes temas do filósofo grego Platão.
Ele distinguia o amor físico, "superficial",
aquele em que o parceiro pouco importa, pois só a aventura interessa,
do amor celeste, em que o amante ama o amado pela sua alma
e o sexo entre eles é um elo forte.
Esse amor celeste implica regras de conduta
para evitar o comportamento intempestivo
dos que se entregam ao amor superficial, também dito vulgar.
Platão diz que o amante e o amado devem se cuidar
para se tornar bons e sábios – virtuosos, enfim.
Na Idade Média, com o surgimento dos trovadores (os poetas líricos),
o amor se tornou um tema privilegiado
nas conversas das cortes da Europa.
Os nobres se perguntavam, por exemplo,
se é mais infeliz a dama que perde o seu amante
porque ele morreu ou aquela que perde porque ele a traiu;
se uma dama traída pelo amante age ou não de forma desleal
ao entregar-se a um segundo mais fiel;
se um cavaleiro que perde toda a esperança de ver a sua dama,
controlada por um marido ciumento, pode ou não se voltar para outra.
O amor e as suas variantes, o sucesso e o insucesso no amor,
a fidelidade e a infidelidade, são temas eternos.
O que muda é a forma de lidar com o sentimento amoroso.
Nós, hoje, não nos orientamos por regras prefixadas
e também não inventariamos os casos possíveis – acreditamos,
pelo contrário, que cada caso é único,
por mais que guarde semelhanças com outros.
Com a descoberta do inconsciente,
a ideia da particularidade de cada indivíduo se impôs.
Sabemos que ninguém vive o amor da mesma maneira.
Também sabemos que o amor se apresenta como um enigma
e nunca se deixa decifrar inteiramente – ele é indissociável do não saber.
Assim, no começo dos anos 80,
quando um editor me pediu que escrevesse um livro sobre o tema,
eu aceitei a proposta – escrevi, porém,
que não há como definir o sentimento amoroso.
Usei, como epígrafe do livro,
uma frase do poeta português Fernando Pessoa:
"Anjo... de que matéria é feita a tua matéria alada?".
O caráter enigmático do amor é uma das razões pelas quais
nós o amamos e não estranhamos a frase
"Se você já não me ama, prefiro morrer".
O amor nos faz ver o mundo com olhos de criança,
ao oferecer surpresas e nos transportar.
Amar é surpreender-se e surpreender-se é viver.
Quem se dá conta disso acaba por entender a frase
"Navegar é preciso, viver não", que Fernando Pessoa usou
como epígrafe da sua obra poética.
Ele se apropriou desse lema da Liga Hanseática –
que, na Idade Média, reunia militar e comercialmente
150 cidades europeias – para falar de um assunto
que hoje diz respeito aos nórdicos, aos portugueses, a todos.

Betty Milan - Psicanalista

Acompanhe a coluna de Betty Milan em
www.veja.com/bettymilan


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

FERNANDA MONTENEGRO E SIMONE DE BEAUVOIR


" Viver sem tempos mortos, gozar a vida sem entraves"

Revista BRAVO! Maio/2009

“A vida é um Demorado Adeus”

Às vésperas de comemorar 80 anos,
Fernanda Montenegro leva para os palcos
o legado da escritora Simone de Beauvoir
e reflete e reflete sobre a morte recente do marido, o ator Fernando Torres
Armando Antenore

Passava um pouco das 21 horas quando, naquele sábado de Aleluia,
Fernanda Montenegro disse as últimas frases do monólogo Viver sem Tempos Mortos.
Por 60 minutos, a atriz carioca interpretara Simone de Beauvoir (1908-1986) .
Entre os que aplaudiam, destacava-se Wilson Ademar, negro de 93 anos,
sapateiro aposentado, que nunca presenciara uma peça antes.
Tão logo tomou conhecimento do espectador inusitado,
Fernanda se comoveu e indagou publicamente:
"O que o senhor imaginava toda vez que pensava num palco?".
Wilson, tímido, respondeu: "Eu não imaginava".
Pois é sobretudo com a imaginação da plateia que a atriz parece contar
enquanto incorpora a filósofa e escritora parisiense,
ícone do feminismo e parceira de outro célebre filósofo,
o existencialista Jean-Paul Sartre.
Na mais despojada produção que estrelou em seis décadas de carreira,
Fernanda vira Simone sem lançar mão de elementos
que remetam fisicamente à personagem.
Não há sotaque, não há trejeitos característicos,
não há nem mesmo um figurino afrancesado.
Com uma camisa social branca e uma calça preta,
a atriz senta-se numa cadeira igualmente preta, único objeto em cena,
e permanece lá durante toda a montagem, sob um persistente foco de luz.
Narra, então, os principais momentos da intensa trajetória de Simone.
Fala sempre na primeira pessoa, usando depoimentos da própria romancista,
extraídos de livros e cartas.
O monólogo dirigido por Felipe Hirsch, desembarca agora em São Paulo
como parte de um evento maior, batizado de Caminhos da Liberdade.
A iniciativa prevê que, antes do espetáculo, o público assista a Uma Mulher Atual, documentário de Dominique Gros sobre Simone, e, depois,
participe de um debate conduzido pela socióloga Rosiska Darcy de Oliveira,
especialista no legado da filósofa.
A atriz, que completa 80 anos em outubro, no percurso, perdeu o marido,
o também ator Fernando Torres.
Quem vê Simone discorrer sobre Sartre ao longo do monólogo
dificilmente deixa de cogitar que talvez exista um subtexto ali
— que talvez Fernanda esteja refletindo sobre o próprio companheiro,
um modo delicado de absorver e superar a morte dele.
No domingo de Páscoa, a artista recebeu a equipe de BRAVO!
para uma conversa de quatro horas.
BRAVO!: Quando você entrou em contato com Simone de Beauvoir e os existencialistas?
Fernanda Montenegro : Logo depois da Segunda Guerra, no fim dos anos 40 e início dos 50.
Era um período em que Simone e Jean-Paul Sartre despontavam como celebridades,
como popstars. Todo mundo do meio artístico e intelectual queria entender o que pensavam. Eu, à época, trabalhava para a Rádio Ministério da Educação,
a lendária Rádio MEC, que já se localizava no centro do Rio de Janeiro.
Ingressei ali em 1945, ainda adolescente, por causa de um projeto
que recrutava novos locutores, redatores e atores.
Fiz o teste, uma leitura de poema, sem botar fé que me chamariam.
Mas me chamaram e acabei passando uma década na emissora.
Jamais imaginei que encontraria por lá um universo tão rico culturalmente.
Tínhamos aulas de português e de declamação,
além de palestras sobre os assuntos que abordávamos no ar.
Por longo tempo, desfrutei do privilégio de apresentar
o programa dominical Douce France (Doce França).
Em função disso, pude me aproximar ainda mais das teses de Sartre e Simone.
Qual o primeiro livro dela que você leu?
Foi O Segundo Sexo, que saiu em 1949
e se transformou num clássico da literatura feminista,
sobretudo por apregoar que as mulheres não nascem mulheres, mas se tornam mulheres.
Ou melhor: que as características associadas tradicionalmente à condição feminina
derivam menos de imposições da natureza e mais de mitos disseminados pela cultura.
O livro, portanto, colocava em xeque a maneira como os homens olhavam as mulheres
e como as próprias mulheres se enxergavam.
Tais ideias, avassaladoras, incendiaram os jovens de minha geração
e nortearam as nossas discussões cotidianas.
Falávamos daquilo em todo canto, nos identificávamos com aquelas análises.
Simone, no fundo, organizou pensamentos e sensações que já circulavam entre nós. Contribuiu, assim, para mudar concretamente as nossas trajetórias.
De que modo alterou a sua?
Sou descendente de italianos e portugueses, um pessoal muito simples,
muito batalhador, e me criei nos subúrbios cariocas.
Desde cedo, conheci mulheres que trabalhavam.
E reparei que, entre os operários, na briga pela sobrevivência,
os melindres do feminino e as prepotências do masculino se diluíam.
Era necessário tocar o barco, garantir o sustento da família
sem dar bola para certos pudores burgueses.
Nesse sentido, a pregação feminista de que as mulheres deviam ir à luta profissionalmente
não me impressionou tanto.
Um outro conceito me seduziu bem mais: o da liberdade.
A noção de que tínhamos direito às nossas próprias vidas,
de que poderíamos escolher o nosso rumo e de que a nossa sexualidade nos pertencia.
Eis o ponto em que o livro de Simone me fisgou profundamente.
Lembro-me de quando vi pela primeira vez a cena da bomba atômica explodindo.
Ou de quando me mostraram as imagens dos campos de concentração nazistas.
O impacto negativo que aquilo me causou foi parecido com o impacto positivo
que O Segundo Sexo exerceu sobre mim.
Garota, já suspeitava que não herdaria o legado de minha mãe e de minhas avós,
que não caminharia à sombra masculina.
O livro de Simone me trouxe os argumentos para levar a suspeita adiante.
Sua mãe trabalhava fora?
Não. Era uma ótima dona de casa, uma administradora emérita do lar.
Cuidava com carinho e eficiência de meu pai, um modelador mecânico, e das três filhas. Quando ficou viúva, caiu em depressão.
Tinha mais de 80 anos e procurou uma psicanalista.
Expôs as angústias à terapeuta e depois a ouviu, ouviu, ouviu.
De repente, interrompeu a conversa e revelou:
"Doutora, sabe do que gostaria mesmo? De liberdade".
Veja bem: minha mãe precisou chegar à extrema velhice
para conseguir expressar o que de fato almejava.
Escutei testemunhos similares — e tardios —
de outras mulheres idosas, como a minha sogra.
Elas integravam uma geração que suportava a dor em silêncio, sem reclamações.
"Caráter e espinha", proclamava minha mãe
quando lhe indagavam quais os principais atributos femininos.
Espinha para se curvar, compreende?
Os existencialistas teorizaram bastante sobre a liberdade humana.
Diziam que "o homem será antes de mais nada o que desejar ser".
Você concorda?
Concordo. Somos os senhores de nossos atos, de nossas opções.
"Deus ajuda quem cedo madruga", ensina o ditado popular.
Se o homem não inventar o próprio destino, Deus não irá interferir.
Você crê em Deus? Simone não acreditava.
Ora acredito, ora desacredito.
Ninguém me demonstrou a presença de Deus.
Tampouco demonstrou o contrário.
Eu talvez cultive uma fé imensa em meio à dúvida.
Por outro lado, creio plenamente no acaso.
O homem nasce livre, mas o acaso tem a última palavra, dizia Simone.
Exato. O acaso se põe acima de qualquer teoria.
É o grande mistério e a principal razão para a misericórdia.
Os homens deveriam se irmanar justamente porque se sujeitam, todos,
às leis insondáveis do acaso.
O que me fez entrar na Rádio MEC com 15 anos?
O que me fez superar a timidez juvenil e concorrer às vagas de locutora e atriz?
Foi o acaso, em parte. Havia a minha vontade e havia o imponderável.
Se tomasse outro rumo naquela ocasião, em quem iria me transformar? Não sei.
Sei apenas que hoje me encontro onde sempre quis. Vivi sem tempos mortos.
Um slogan de maio de 1968: "Viver sem tempos mortos, gozar a vida sem entraves". Você pinçou um trecho dele para batizar sua peça, não?
É que realmente vivi sem tempos mortos, algo de que me orgulho.
Mergulhei com avidez na existência que ganhei de Deus, da natureza ou do acaso.
Realizei uma profissão que considero importantíssima —
subir no palco para converter meu corpo em instrumento de discussões.
Nunca roubei, nunca matei.
Se impedi alguém de alcançar a felicidade,
não me dei conta e peço desculpas. Peço perdão até.
Não me julgo perfeita. Longe de mim!
Tenho as minhas zonas escuras.
Que zonas escuras?
Sou rancorosa. Lógico que rejeito o sentimento e me policio: "Vamos largar de besteira!".
No entanto... Ressinto-me igualmente de não ter mais disponibilidade para os amigos e a família. Às vezes, exagero na reclusão. Distancio-me de meus afetos.
Quando penso nos colegas que se foram e na atenção insuficiente que lhes dediquei...
Flávio Rangel, Renato Consorte, Paulo Gracindo, Lélia Abramo, Zilka Salaberry,
Gianfrancesco Guarnieri, Paulo Autran...
Convivi tão pouco com o Autran... Sorte que, às vésperas de morrer,
ele me mandou uma carta, comovido. Falava de coisas doces.
Foi provavelmente a última carta que redigiu.
A vida não passa disso, de um demorado adeus.
Em setembro de 2008, você assistiu à morte de seu marido, o ator e produtor Fernando Torres, companheiro de quase seis décadas. Como lidou com o fato?
Não lidei. Continuo lidando...
Jamais a sensação do absurdo se mostrou tão palpável, tão nítida.
Você não aceita aquele virar de página. Você nega a partida.
O engraçado é que só me toquei de minha finitude depois de perder o Fernando.
Claro que, antes, me observava no espelho e acusava a passagem dos anos.
Mas não percebia que meu tempo está se esgotando, uma constatação terrível.
Experimentar o desmonte psíquico, o desmonte muscular, o desmonte existencial...
Não me parece fácil. Por enquanto, tudo vai bem.
Disponho de vitalidade e ânimo para prosseguir.
Consigo trabalhar 14, 18 horas por dia.
Noto, porém, que algumas pessoas já me olham com assombro:
"Ainda fala! Ainda se locomove!".
Tornei-me um estranho fenômeno de resistência, como outros de minha idade.
Mesmo assim, acho que a pior tragédia é morrer jovem.
Não há nada mais triste do que a vida interrompida precocemente.
Fernando concordava com as ideias defendidas por Simone em O Segundo Sexo?
Sim, totalmente. Era um homem de tutano, de fibra,
um homem libertário que recusava o machismo.
Enfrentou meu sucesso e minha personalidade forte à maneira de um gigante.
Em nenhum momento me castrou.
Pelo contrário: me incentivou muito e, na função de produtor,
buscou criar as melhores condições para meu progresso como atriz.
Certas vezes, me vendo no palco, chorava de emoção.
Se minhas conquistas o incomodavam, não deixou transparecer
— atitude que considero de uma grandeza absoluta.
Infelizmente, sofreu por 20 anos em razão de uma isquemia cerebral que, primeiro,
lhe trouxe depressões violentíssimas e, depois, lhe prejudicou os movimentos.
Um quadro tão terrível quanto inesperado. Uma armadilha do acaso.
Meses antes de morrer, fez questão de me aguardar no aeroporto
quando retornei de uma viagem à Itália.
Estava contente e me acenou da cadeira de rodas.
Segurava um buquê de flores. Perguntei: "Por que as flores, Fernando?".
E ele: "Porque nosso terceiro neto acabou de chegar".
Recebi a notícia do nascimento de Antônio assim, com flores.
Simone e Sartre protagonizaram uma relação aberta e se cercaram de vários parceiros sexuais. Você e Fernando viveram um casamento semelhante?
Não. Firmamos um pacto de fidelidade, que deveria se manter até onde desse. E deu!
No meu caso, deu. Todas as minhas fantasias extraconjugais resolvi em cena,
sem amargar qualquer frustração.
Se por ventura não deu para o Fernando, respeito.
Fomos transgressores à nossa moda, percebe?
Qual a maior subversão que um casal pode praticar nos dias de hoje? Permanecer junto!
Nós permanecemos — com altos e baixos, mas permanecemos.
Simone não teve filhos. Você gerou dois, a atriz Fernanda Torres
e o cineasta Cláudio Torres. Maternidade e feminismo combinam?
Certamente. Mesmo orbitando em torno do ideário feminista,
sempre desejei uma família. Nunca desprezei "o orgulho da carne".
E não me arrependo: acima de tudo, sou a mãe de meus filhos.
Mais que atriz, mais que a viúva do Fernando, sou a mãe de meus filhos.
Por que você resistiu à plástica, seguindo na contramão de tantos artistas?
O feminismo a influenciou nesse terreno?
Não me oponho às cirurgias estéticas nem condeno quem as faça,
mas receio perder minha cara.
Óbvio que, à beira dos 80, gostaria de exibir um pescoço maravilhoso,
eliminar as bolsas abaixo dos olhos, implodir a papada sob o queixo.
O problema é que não me reconheceria sem tais "defeitos".
Fora que, aderindo à plástica, ganharia uns dez anos e,
em vez de ostentar 80, recuaria para 70. Qual a vantagem?
Você se julga bonita?
Ultimamente, quando espio fotos em que apareço jovem,
enxergo certa graça ali.
Eu fugia muitíssimo do padrão.
Não me equiparava às beldades daquele momento: Doris Day, Marilyn Monroe,
Tônia Carrero, Maria Della Costa.
O curioso é que nem por isso me sentia inferior.
Numa ocasião, a companhia de Henriette Morineau
me contratou para assumir o papel de uma feiosa em um espetáculo
— não lembro o nome da peça.
Minha personagem rivalizava com uma prima linda e fogosa,
um anjo exterminador, um furacão que seduzia o tio,
os namorados alheios, o diabo.
Num dos ensaios, arrumei coragem e confessei que não queria interpretar a feiosa.
Queria encarnar o anjo exterminador.
O resto do elenco me chamou de louca.
Pois acabei pegando o papel e afirmo, com enorme alegria,
que ninguém protestou na plateia.
Ninguém ousou dizer que aquele estrepezinho não seria capaz de enfeitiçar deus e o mundo.
Já idosa, Simone declarou que não se deixaria escravizar pelo passado.
Você também parece não se prender às glórias de outros tempos
e abdica de títulos que a colocam em pedestais,
como o de "primeira dama do teatro brasileiro". Por quê?
Entenda: prezo tudo que realizei, mas o passado é o passado. Terminou.
Não pretendo me entregar às divagações do tipo "ah, meus verdes vales...".
Rechaço a melancolia nostálgica e, à semelhança de Simone, frequentemente me pergunto: "Que espaço o passado reserva para a minha liberdade hoje?".
Quanto à classificação de "primeira dama", não me ofendo. Em absoluto!
Só avalio que o rótulo não me cabe. Vi e vejo atrizes extraordinárias na estrada.
Não é possível que apenas uma envergue a coroa. Precisamos dividir os louros.
Sem contar que a mídia e os críticos mencionam sempre as damas e nunca os lordes.
Cadê os lordes? Nossos palcos estão repletos deles.
Na verdade, títulos do gênero são a herança de um teatro romântico, heroico
— um teatro que jamais busquei.
Uma vez, a Nandinha, minha filha, filmou no México com o Anthony Hopkins
e me escreveu de lá: "Mamãe, ele é igualzinho a gente".
Correto! O ofício não nos tira do âmbito humano.
Continuamos falíveis como qualquer indivíduo.
Mesmo as divas tropeçam em cena, sofrem acessos horríveis de tosse,
esquecem o texto, temem não dar conta do recado.
Você teme?
Muito! Desde moça, temo que me falte o sopro, o mistério da criação.
Há artistas que perdem a chama de repente, sem saber o porquê.
Não tenho consciência se já a perdi. Sinceramente não tenho. E talvez nem deseje ter.

A PEÇA Viver sem Tempos Mortos.
Monólogo sobre Simone de Beauvoir.
Direção: Felipe Hirsch.
Direção de arte: Daniela Thomas.
Com Fernanda Montenegro.