sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O OUTRO
(Bernhard Schlink)

Um conto, rápido, emocionante, fulgás, como a própria vida.
Um olhar sobre o outro e sobre nós mesmos,
Inusitado.

A mentira da verdade
Por José Castello(Caderno Prosa & Verso - edição 09/05/2009)

A literatura é um rasgão na placidez do mundo.
Olhar enviesado, que nos pega pelas costas e de mau jeito,
ela se impõe como um golpe e nos agita.
Pode a literatura dar conta do mundo?
Lendo Manuel Bandeira, deparo com uma de suas traduções
do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez, que me ajuda a pensar:
"Colhi-te? Não sei/ Se te colhi, pluma suavíssima/ Ou se colhi tua sombra".
Nunca chegamos ao que queremos.
O mundo se assemelha a esses espelhos sinuosos que,
nas feiras e nos circos, nos oferecem sucessivas imagens deformadas.
Você se mira naquelas sombras, na esperança, tola, de uma convicção.
À saída, já não sabe mais quem é.
Ideias sobre os limites fluidos do ser me vêm enquanto leio "O outro",
novela do alemão Bernhard Schlink (Record, tradução de Kristina Michahelles).
Um livro simples que - com a delicadeza cruel dos anestesistas,
que nos embalam em sono profundo só para que nos retalhem
- arranca a cortina de ilusões em que nos protegemos.
Schlink (que é também o autor de "O leitor",
livro que Stephen Daldry transformou em um filme premiado) nos pega de jeito.
Acredita-se, em geral, que ele seja só um inofensivo autor de bestsellers.
Você se deixa levar por seus relatos, neles se aconchega,
como se abraçasse um animalzinho de estimação.
Ao final, porém, o livro fica cravado em seu peito, como uma adaga.
"O outro" é a história de Bengt, um músico que,
depois de perder a mulher, Lisa, vitimada por um câncer,
faz uma descoberta cruel: durante longos anos,
sem que ele jamais suspeitasse, a esposa o traiu.
A carta de Rolf, o Outro, lhe chega em meio aos cartões de condolências.
Destina-se não a ele, o viúvo, mas a Lisa, a morta.
Julgando-a viva, Rolf lhe escreve para falar do "pecado da vida não vivida, do amor não amado". Implora que volte a seus braços.Bengt lê a carta do Outro com desespero.
O ciúme o fere. Mais dolorosa, porém, é a ideia de que, provavelmente,
não conhecia a mulher que amou.
"Como saber se ela fora uma para ele e outra para o Outro?" - ele se pergunta.
Não se interessa por Rolf, mas pelo lugar que o Outro ocupou na vida de sua mulher.
Lugar não só de um terceiro, mas a partir do qual uma nova imagem de Lisa
- agora vista como uma estranha, ela também Outra - se descortina.
Ao lado do Outro, Lisa era, por certo, a mesma mulher que ele sempre amou e a quem,
com tanto carinho, ajudou a morrer.
Mas era, ao mesmo tempo, uma Outra, uma desconhecida.
A imagem da amada se divide.
O que é pior: Lisa ter sido Outra ao lado do Outro, ou ter sido a mesma?
Quem, afinal, foi Lisa: a mulher que o amou, ou a mulher que o traiu?
Bengt controla a raiva e, friamente, escreve ao Outro comunicando a morte da esposa.
Quer dar a questão por encerrada.
São apenas três frases secas: "Sua carta chegou. Mas já não chegou para quem você a escreveu. A Lisa que você conheceu e amou morreu."
Em vez de tomá-la como um comunicado fúnebre, porém,
o Outro a lê como um pedido de ruptura, que a amada assina.
Como são pérfidas as palavras!
A carta - a mesma carta -, dependendo de quem a lê, se torna outra carta.
As três linhas escritas por Bengt imitam a consistência fluida da literatura,
massa pegajosa que, na mente de cada leitor, toma uma forma.
Volto à sentença genial de Roa Bastos: "Um livro só existe na cabeça do leitor".
Para cada um de nós, um mesmo livro é, sempre, outro livro.
Um desesperado Bengt responde a carta em nome de sua mulher - "ressuscistando-a".
Ao ocupar o papel da morta, ele experimenta o prazer perverso
de transformar Rolf em seu fantoche.
Passa a lidar, assim, com um segundo Rolf: não mais o homem que Lisa amou,
mas o tolo que ele, por vingança, manipula.
Faz assim, do Outro, um terceiro.
A partir daí, Bengt se entrega a um jogo sofisticado,
no qual as regras variam de acordo com quem mexe as peças.
Não é outra coisa a literatura, senão um mundo arbitrário que,
nas mãos de cada escritor, se transforma em algo distinto.
A literatura é uma valise dentro da qual o escritor,
iludido a respeito de seu poder, arruma as palavras.
Mas só o leitor - cada leitor - lhes confere sentido.
A partir daí, Bengt passa a viver para o Outro que, no entanto,
já não é o Mesmo que Lisa conheceu.
Que desassossego! O mundo sacoleja: as posições se desfiguram, os horizontes quebram.
Com as cartas escritas em nome de Lisa, um temerário Bengt não só
se intromete no amor secreto entre ela e o Outro,
como inventa uma maneira (suicida, pois faz dele uma carta fora do baralho)
de ressuscitar a mulher.
O jogo se desenrola até o momento-limite em que Bengt,
não suportando mais o solo quebradiço em que avança,
decide procurar o Outro, Rolf em pessoa, para encará-lo.
Acredita que, defrontando a verdade, pisará, enfim, em terra firme.
A verdade, porém, é deplorável: Rolf não passa de um pobre fanfarrão, um miserável janota.
A verdade é uma mentira. O que Lisa via, afinal, naquele imbecil?
Bengt abandona, então, a busca da verdade e a substitui - para usar uma expressão do artista russo Wassily Kandinsky - pela invenção de uma "olhada interior".
Abdica da nitidez e da perfeição e retorna a si.
Também o Outro se duplica: Rolf era um homem para Lisa,
passa a ser outro para Bengt, que só assim pode fazer a travessia de seu luto.
Ao leitor cabe, agora, elaborar uma perda:
a de suas ilusões a respeito do que lê.
Não temos mais o direito de acreditar nesses personagens límpidos e coerentes
que habitam as narrativas da tradição.
Se eles ainda surgem em muitos relatos contemporâneos,
já não passam de farsas.
Cabe, então, ao leitor se perguntar quem era aquele Outro que,
em seu lugar, com sinceridade e boa fé, lia com tanta candura.
A crença cega, os dogmas, as certezas já não lhe servem mais.
A novela o leva a uma difícil descoberta:
a de que as grandes narrativas são aquelas que nos libertam.
Nem a beleza dá acesso à verdade, que é sempre inacessível.
"A beleza não é meta suficiente para a arte", dizia Kandinsky.
Vêm-me, agora sim, os versos de Manuel Bandeira:
"Não quero mais saber do lirismo que não é libertação".


Trecho de "O Outro"

"O outro não embelezara Lisa com suas palavras.
Simplemente enxergara a maravilhosa violinista que era.
Para ele, não tinha importância se ela era solista,
se tocava o primeiro ou segundo violino,
se era mais ou menos bem-sucedida ou famosa.
Ele não dizia coisas bonitas,
ele encontrava coisas bonitas,
ele encontrava beleza onde outros a escondiam
ou não enxergava e usava os atributos que os outros utilizavam
para expressar a sua admiração para expressar a sua própria.
Se os outros só podiam conceber uma violinista maravilhosa se ela era famosa,
então ele precisava se referir à violinista maravilhosa como famosa.
Da mesma forma, ele devia ter enxergado em si mesmo o grande mediador de conflitos,
o campeão de polo e o dono de um dobermann premiado.
Talvez tivesse o talento para isso.
Pois a beleza que ele tanto celebrava não apenas continha uma verdade mais elevada,
e sim mais palpável; afinal, ele não falava das apresentações de Lisa como solista,
mesmo que suas celebrações e seus elogios soassem assim para convidados
e ninguém se incomodara com aquilo, e sim sobre uma peça em que ela tocara a parte decisiva, marcante e brilhante.
Também a alegria de Lisa era verdadeira.
Não que Lisa tivesse sido alegre com o Outro e não com ele,
ela não fora mais alegre com o Outro do que com ele.
Lisa recebera e tornara os outros alegres de múltiplas maneiras - sempre alegre.
A alegria que ela lhe dera não fora uma alegria menor, mas precisamente a que cabia no seu coração pesado e mais azedo.
Ela não o privara de nada.
Dera-lhe tudo o que ele fora capaz de receber".

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Agosto

Há uma lua cheia lá fora,
Enorme!
Belíssima!
Lua de lembranças,
Intermináveis!

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Ao nosso comum que é tão raro!

Monte Castelo
Renato Russo (recortes do Apóstolo Paulo e de Camões).


Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
É só o amor, é só o amor

Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja
Ou se envaidece...
O amor é o fogo

Que arde sem se ver
É ferida que dói
E não se sente
É um contentamento
Descontente
É dor que desatina sem doer...
Ainda que eu falasse

A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...
É um não querer

Mais que bem querer
É solitário andar
Por entre a gente
É um não contentar-se
De contente
É cuidar que se ganha
Em se perder...
É um estar-se preso

Por vontade
É servir a quem vence
O vencedor
É um ter com quem nos mata
A lealdade
Tão contrário a si
É o mesmo amor...
Estou acordado


E todos dormem, todos dormem
Todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade...
Ainda que eu falasse

A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...









SINTRA, PT


segunda-feira, 3 de agosto de 2009

TUDO OU NADA

O amor só pode ser ou tudo ou nada.
Viver de tibiezas é uma ofensa
A Deus, ao Universo, à sorte imensa
De sermos caminhantes nesta estrada.
...
Sem ele inteiro a vida é desgraçada,
Eterna prisioneira, dor intensa.
Minando até que a morte chegue e vença
E liberte a nossa alma condenada!
...
Ele é o grande milagre que nos bate
Um dia sem convite à nossa porta,
Entrando em cada vida pouco a pouco...
...
Que importa que o soframos, que nos mate,
Se a vida sem amor é mais que morta?
Viver de frouxidão?...Antes ser louco!

Ilídia Vale - " O rosto das Palavras "
Salvador, Cidade Baixa,
"Cais do Porto".

domingo, 2 de agosto de 2009

"CORAÇÃO VAGABUNDO"

Meu coração não se cansa
de ter esperança
de um dia ser tudo o que quer
meu coração de criança
não és só a lembrança
de um vulto feliz de mulher
que passou por meu sonho
sem dizer adeus
e fez dos olhos meus
um chorar mais sem fim
meu coração vagabundo
quer guardar o mundo em mim
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O documentário do paulistano Fernando Grostein Andrade mostra as viagens de Caetano Veloso por São Paulo, Nova York, Tóquio, Osaka e Kyoto durante o lançamento do álbum
"A Foreign Sound", primeiro CD do artista com o repertório totalmente em inglês.
Filmado entre os anos de 2003 e 2005, conta com participações do cineasta Michelangelo Antonioni, David Byrne, Regina Casé, Pedro Almodóvar e Gisele Bündchen.
A produção é de Raul Dória e Paula Lavigne.
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Ver e ouvir Caetano Veloso é sempre muito bom, é ótimo!
Admiro todo trabalho de Caetano e o "Foreign Sound" foi um disco que aproximou-me muito da música americana.
Gostei das reflexões do Caetano sobre a música brasileira,
da simplicidade ao falar das suas origens em Santo Amaro, interior da Bahia,
das suas relações com as cidades por onde faz a turnê,
das limitações que possúi, como a falta da fluência na lingua inglesa
e do domínio no violão, além de outras declarações
sobre a forma de estar na vida e seu cotidiano "comum".
Aparece assim um Caetano inteligente, simples,espontâneo, bem humorado,
observador, e em transformação.
Impressionou-me vê-lo falar da velhice,
e sentir em alguns momentos certa nostalgia na sua fala.
Entretanto o documentário não emocionou-me como esperava.
Saí do cinema com o sentimento de falta,esperava mais.
Mas como diz o Fernando Grostein,
“Deixei-me guiar pela emoção”, “Foi um processo de tentativa e erro até encontrar uma história. Não se trata de um filme biográfico, mas sim de uma passagem pela vida de Caetano.”