quarta-feira, 13 de outubro de 2010

ADELIA PRADO

"Mêdo eu tenho de não ter mistério...."
                                     (Adélia Prado)


Volto a falar de Adélia; impossível seria não voltar.
A mineira de Divinópolis, lança mais um livro,
"AMAR EXIGE SACRIFÍCIO". 
Nele ela diz que que o amor é a morte do ego,
e defende: homens e mulheres precisam reencontrar
os seus papéis no mundo.

“A experiência amorosa exige sacrifício.
Não se ama para ser  recompensado.
O amor é sua própria recompensa.
Não resisto em citar Drummond falando da poesia coisa parecida:
“Poesia, o perfume que exalas é tua justificação”.
Não há amor fácil, mas todo amor é maravilha, saúde,
“remédio contra a loucura”, coisa que Guimarães Rosa ensinou.
É a experiência humana mais exigente.
Não é contrato, troca de favores, investimento,
é entrega  e compromisso..
Do “sacrificio” de amar nasce a mais perfeita alegria.
Ninguém faz cara feia quando se sacrifica por amor.
Não se trata de anulação, subserviência de quem ama,
trata-se da morte do ego, tarefa a ser feita até o último suspiro.”
(depoimento dado a Revista Lola Magazine – Outubro/10)

Entrevista Adélia Prado

SEO JOÃO - Qual é o impacto do sucesso para a pessoa e a poetisa Adélia Prado?
ADÉLIA PRADO - Acredito, e com muita alegria, que isso que você chama de sucesso
nunca foi uma meta. É um acréscimo, a sobremesa da coisa, a hora do recreio.
Sempre tive uma consciência muita aguda de que isto é uma coisa passageira,
que não é essencial e decorre do retorno da obra.
As pessoas às vezes confundem a obra com o autor.
Nunca deixei, e espero que não aconteça,
que isso interfira na minha vida de família e na minha própria produção literária.
Eu sou fiel, tento ser fiel à poesia, à literatura.
Quando vem o sucesso é como se fosse um presente,
um bom retorno que eu e minha família aproveitamos.
Mas não preocupa, não. O que eles estão querendo de mim
é realmente o exercício do meu papel de mãe e de dona de casa.
O Zé [esposo de Adélia] me acompanha sempre.
Acho muito bom viajar acompanhada.
Tudo está na medida certa.
Eu vejo como uma coisa boa, é prazeroso, não interfere.

SJ - Não mesmo?
ADÉLIA - Não. Se interferisse eu estava perdida.
Minha vida familiar ia virar uma bagunça.
Meu próprio texto ia sofrer com isso.
É uma coisa que vejo como um presente, uma coisa boa.
Estar em Montes Claros, eu devo isso a quê?
À literatura. É um presente de Deus.
Tenho sorte, devo ficar agradecida, achar bom, curtir.

SJ - Tem uma definição de poesia que você gosta muito,
segundo a qual seria a “revelação do real” ou uma “abertura para o real”.
Pode explicar melhor essa definição?
ADÉLIA - A poesia, o texto poético, verdadeiro, é puramente expressivo.
Expressa aquilo que provocou o texto.
Se estes óculos [aponta para os seus óculos sobre a mesa]
aqui me provocarem um poema verdadeiro,
o poema vai expressar a realidade deste objeto.
Então, toda a arte verdadeira é isso que você falou muito bem,
é uma abertura para o real.
Para mim, é o máximo de definição de poesia.
A poesia não é uma descrição de alguma coisa,
não é um comentário a respeito de nada.
É uma expressão. Nesse sentido, a arte me abre para a realidade.
A maravilha dela é isso. É uma epifania.
Você puxa uma cortina e enxerga. Isso em qualquer tipo de arte. De arte verdadeira.
E toda arte verdadeira só tem um objeto: a poesia.
Só quando ela acontece em qualquer forma de arte é que a arte acontece,
como o teatro, a música, o cinema, como isso, como aquilo.
A poesia é essa radiação que as coisas têm e que são percebidas através da arte. Essa radiação é como se fosse o brilho da realidade.
SJ - Tem a questão da subjetividade criadora, que também vai conseguir ver essa realidade...
ADÉLIA - Este é o papel do artista. Ele está aparelhado com uma sensibilidade
que é comum a todo mundo.
Todos nós temos a mesma sensibilidade.
A diferença é que o artista tem verbo para se expressar.
Se for som e o artista é músico, vai mostrar numa composição, ou tocando.
Se for pintora, vou pintar, sempre fazendo isso
para que o outro veja o que ele, o artista, viu antes.
Aí todo mundo olha e fala: Ah, é mesmo, eu também senti isso,
ue bom que alguém falou isso e é assim mesmo.
 Quando eu lia Guimarães Rosa, eu ficava tão espantada que eu falava assim:
“Ah, ele tá danado demais, mas tem uma coisinha que ele não lembrou”,
e guardava aquilo. Estava lendo e, de repente, estava lá a coisa.
Aí eu falava “ah, danado!” Uma sensibilidade monstruosa.
E uma arte tão monstruosa quanto o tamanho da sensibilidade,
capaz de universalizar para mim, objetivar aquele sentimentozinho mais oculto,
aquela experiência mais anônima.
Está lá no Grande Sertão. Esse é o papel do artista,
botar em existência uma coisa que está latente em todo mundo,
para todo mundo ver e falar “Ah, isso mesmo, eu não sou doido não.
Eu também senti isso, olha lá”.
Então, ele comunica para todos aquilo que já é de todos.

SJ - O que você quer dizer quando fala “Deus mora em mim. Mas a letra é minha”.
ADÉLIA - A letra é a única coisa que eu reconheço como minha.
Até rigorosamente falando, nada é nada. Nada é da gente.
Mas, se você pode dizer que alguma coisa é do artista é o registro pessoal da obra.
O sujeito que mora na Rússia vai ter um registro eslavo,
uma postura diferente da minha. O meu registro é mineiro, lá do interior
Esse registro é meu, é uma experiência pessoal.
Mas a poesia, que pousa naquele registro, é de Deus. Q
uero dizer, não é minha.
Posso chamar de Deus, posso chamar de Absoluto,
de qualquer outro nome que eu queira, mas minha não é.
Ela me perpassa, passa através de mim e vai além.
Ela está aquém e além de mim.
Os artistas são pequenos soldadinhos que têm esse dever sagrado
de corresponder a essa exigência.
É uma alegria e ao mesmo tempo um fardo.
Porque se você não faz isso, você fica doente,
fica uma pessoa muito desagradável, muito infeliz.

SJ - Interessante as colocações que você já fez, que está fazendo aqui agora.
Elas caminham na direção de uma fala sua no Seminário de Psicologia Social e Senso Religioso, realizado na UFMG em 1998,
que foi transcrito com o título Arte como experiência religiosa.
Você fala justamente nesse sentido, que a experiência artística
e a experiência religiosa convergem de certa maneira,
no sentido de que elas não dizem respeito à inteligência, ao entendimento,
às faculdades lógicas. Mas você fala também de carência, vazio.
Você aborda no livro Manuscritos de Felipa quando fala assim “Gemidos de amor/ Dizemos e não erramos/ Dói o amor em quem ama”... Então, o amor dói, a vida dói, isso é a vida?
ADÉLIA - A vida é um vale de lágrimas. A arte, como a filosofia, é uma tentativa de superar os limites. O primeiro é o corpo. Você tem de carregar o corpo para onde você vai. Olha que peleja que é sair de Divinópolis e vim parar aqui em Montes Claros? Tem de entrar no ônibus, tem de parar pra comer. Os limites e as exigências da sua situação corporal, isso já é um limite. Mas essa matéria é habitada por um desejo infinito. Tudo é pouco para mim. Não tem arte que supra o meu desejo. Para o do meu coração, o mar é uma gota. Eu quero é tudo, o infinito é o que todo mundo quer. Quando você fala em amor, você quer o amor absoluto. Você casa muito apaixonado e para que o amor e a paixão perdurem, precisa de todo o seu empenho na morte do ego. O trabalho que dá de você preservar a sua projeção amorosa, a sua paixão. Porque não posso oferecer para o outro tudo o que ele quer, nem o outro para mim. Tem de haver uma busca de um absoluto que está fora de um e de outro. O amor é uma experiência do limite. Eu amo não é por causa, é apesar de. Quando alguém fala que gosta de mim, fico espantadíssima. As pessoas amam na gente aquilo que elas projetam no amor. De fato, a gente é isso, esse limite, essa miséria. E aí põe miséria, põe doença, põe dificuldades de toda ordem, os traumas herdados, psicológicos, tudo. Nós somos pura necessidade. A gente é a necessidade encarnada. Eu vejo a superação disso, isso é um caminho de santidade, não tem outra palavra para isso não. Essa superação do ego. Os psicanalistas estão aí para tentar fazer isso. Às vezes fazem equivocadamente. Falam: “Não, tudo bem, não existe culpa não, isso é bobagem”. Essa culpa de não amar, não aceitar a condição humana. Aceitar a condição humana é que é santidade. Você pode ver que a felicidade dos santos, se você ler a biografia deles, é porque eles descansaram na condição deles. Sou criatura mesmo, e criatura humana. Aceitar isso já é criar asas. É isso que eu peço a Deus todo dia.
SJ - Aceitar a condição humana?
ADÉLIA - Sim, e é difícil demais. Sou um bicho que tem consciência de que é bicho. Ser galinha é ótimo. Todas as galinhas são absolutamente iguais. Você mata uma galinha, faz ela ao molho pardo, vem outra, vem outra, vem outra, nenhuma reclama. Então, a grande dor é saber que eu sou uma galinha... ao molho pardo. E isso é terrível! A gente passa sim. Superar isso é a hora quando a gente começa a ficar maduro e humilde. A hora em que você começa a botar salto alto e você lembra: opa, calma. E a arte é feita por pessoas assim. Olha Mozart. Pela biografia dele era uma pessoa absolutamente inconveniente, vulgar mesmo. Mas o que ele produzia, o que ele carregava, era divino. Então, uma dificuldade do artista é essa. É ver a arte que ele faz e aquilo que ele é. É uma tristeza isso. Então a gente tem que sair correndo atrás da obra, atrás da excelência da obra.

SJ - Voltando a Guimarães Rosa, Riobaldo diz que todo dia o homem aprende uma forma nova de medo.
ADÉLIA - A paixão humana mais terrível é o medo. A gente fica paralisada. As pessoas que estão em crise, depressivas ou psicóticas ficam paralisadas pelo medo. Sabe o que é mais triste? Que o medo da morte é o medo de viver, humilha ainda mais a gente. Tenho medo de entrar no ônibus, medo do ônibus cair. Mas o que eu tenho é medo de viver. Eu projeto todo esse meu medo de viver, essa economia que eu faço dos meus pensamentos, do meu amor, da minha paciência, das minhas virtudes. Economizo isso, de medo. É terrível.

SJ - E Adélia Prado já aceitou a morte?
ADÉLIA - Melhorei bastante. Não melhorei, Zé? [risos] O Zé é que sabe. [risos] É igual aquele menino a quem você pergunta “Você gosta de ovo?” e ele: “Mãe, eu gosto de ovo?” Melhorei? De verdade, nessas alturas, assim, depois de experiências mais difíceis a gente melhora. Eu acho que há um crescimento, um amadurecimento na própria fé, na confiança em Deus. Enfim, é um absurdo eu existir e esse absurdo, entre aspas, que me criou, certamente me sustenta. Quem me deu o começo vai me acolher no fim. Você é convocado a uma fé mais madura, mais confiante, fica mais alegre, mais leve. A maior alegria é um sinal de um crescimento na fé e a superação desses medos horrorosos. O medo da morte é horrendo. A gente vai ficando assim, compra bolsinha, faz recital, essas coisas ajudam a gente a caminhar. Agora, difícil mesmo é estar pronto. Dizem que Elias subiu aos céus num carro de fogo, sem passar pela morte. Nossa Senhora também, dizem, não morreu, apesar de ser ela imaculada e nós sermos maculados. Mas é bom também a gente não saber. Saber demais envelhece. Ignorância é muito bom. A gente vive é na fé.

SJ - Adélia, de todo coração, muitíssimo obrigado.
ADÉLIA - Não carece, meu Deus. Virou poesia.
Obrigada, você, viu Marcelo. Bom dia procê.

*MARCELO NILO MOEBUS é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras / Estudos Literários da Unimontes - Universidade Estadual de Montes Claros.