Quero compartilhar essa crônica da Betty; 
tenho na minha cabeceira alguns livros dela,
dai nao preciso dizer o quanto admiro a sua fala.
Jovem até o fim
O que significa envelhecer? 
Ouso perguntar o significado desse verbo, 
que a modernidade ocidental baniria da língua se pudesse. 
No primeiro sentido do dicionário, envelhecer é tornar-se velho. 
Leio e releio a frase, que me remete a um amigo de infância, 
Francisco, precocemente envelhecido. 
Continuo, no entanto, sem resposta. 
Volto ao dicionário. 
No segundo sentido, envelhecer é tomar aspecto de velho:
Olho a foto do psicanalista francês Jacques Lacan que está na parede 
e observo seus cabelos brancos. 
Só que ele não se mostra envelhecido pelas suas cãs. 
A intensidade do seu olhar evidencia a juventude do homem - 
que permanecia jovem aos 74 anos, quando o conheci. 
Só bem depois ele perdeu o aspecto jovial. 
Nos outros sentidos fornecidos pelo dicionário, 
também não encontro uma resposta satisfatória. 
No caso dos seres humanos, não se pode dizer que envelhecer é perder o viço. O homem não é um fruto. 
Tampouco se pode dizer que é estar em desuso. 
O homem não é um objeto. 
A busca de uma definição precisa, por meio da língua, se revelou estéril. 
Olho de novo para a foto de Lacan e concluo que o envelhecimento físico, 
por si só, não é suficiente para caracterizar um velho. 
Eu me pergunto, então, por que, ao contrário de Lacan, 
meu amigo Francisco envelheceu aos 60. 
Citando - e comparando-se a - Pablo Picasso, o pintor espanhol, 
Lacan dizia que não procurava as suas ideias, simplesmente as achava. 
Um dia, declarou em um dos seus seminários: 
"Eu agora procuro e não acho". 
Com essa frase, anunciou que a sua vida se apagava. 
Pouco depois, tomei o avião de volta para o Brasil. 
Naquele período, a única razão para eu ficar na França 
era a oportunidade de trabalhar com ele. 
A juventude de Lacan, como a de Picasso, estava ligada à capacidade 
de se renovar através do trabalho. 
Duas vezes por mês, ele falava em público, para plateias de 1 000 pessoas, com ideias novas, uma atividade que demandava grande esforço. 
Mais de urna vez, encontrei-o exausto, em seu consulrório. 
Lacan foi um exemplo por nunca ter parado de começar. 
Embora fosse um intelectual, meu amigo Francisco acreditou que, 
a partir dos 60 anos, já não podia iniciar nada e, 
por esse motivo, não parou de se repetir. 
Não quis, inclusive, abrir mão de nenhum hábito da juventude. 
Continuava a comer, beber e fumar como aos 18. 
Lamentava o tempo que passava, porém não aceitava o fato traduzido nas mudanças do corpo e, assim, recusava-se a encontrar soluções para a sua própria vida. 
Só sabia dizer: "Na minha idade é assim". 
Foi vítima de uma fantasia arcaica sobre o tempo e viveu na contramão, fazendo de conta que o tempo não existia. 
Morreu precocemente por não ter sido capaz de entender que, 
depois de deixar de ser natural, a juventude é uma conquista. 
Revista Veja - por Milan,Betty
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