Para os amigos de perto e os de longe, além mar!
ARTE DA CELEBRAÇÃO 
A passagem de ano não deveria pedir projetos (e posteriores remorsos), 
mais projetos (e mais futuros arrependimentos), 
e sim abrir a portinhola de algum alívio, alguma alegria. 
Mas talvez a gente goste de sofrer. 
Lembrei-me agora da deliciosa historinha de um monge muito velho, 
quase centenário, que num remoto mosteiro 
pede a um monge bem moço que o ajude ainda uma vez 
a ir à biblioteca que guarda preciosos alfarrábios. 
Pela última vez, ele quer folhear uma enciclopédia ou encíclica papal, 
algo assim — a princípio, o moço não entende direito. 
O jovem monge instala, então, 
o velhíssimo velhinho junto a uma mesa imensa, 
tudo lá é muito grande e muito antigo. 
Mesa de carvalho, claro. 
É um aposento secreto no fundo da biblioteca, 
onde só os monges iniciados entram. 
O rapaz consegue o livrão, 
coloca-o na mesa diante do velhíssimo velhinho e sai, dizendo: 
“Qualquer coisa, toque essa sineta que eu venho acudi-lo”. 
Passa-se o tempo, o jovem monge se distrai com seus afazeres,
até que se lembra: e o ancião, como estará? 
Preocupa-se com o longo silêncio — será que ele morreu? 
Corre até o fundo da biblioteca, até a sala secreta, 
e encontra o velho monge batendo repetidamente a cabeça 
no tampo da mesa: 
— Mestre, o que houve? O senhor vai se machucar! 
O monge centenário chora e repete certas palavras 
que o moço custa a entender: 
— Imagine, imagine! 
A palavra de ordem, a recomendação, a essência, 
não era celibate, mas celebrate! (...não era celibato, mas celebração!)
Logicamente, em inglês a coisa tem mais graça, 
mas mesmo quem lê aqui há de entender: 
desperdiçamos tempo, vida e energia sofrendo por bobagens, 
arruinando as alegrias, ignorando afetos, 
trabalhando mais do que seria necessário para a nossa dignidade, 
curtindo mais o negativo do que o positivo, 
quando afinal a ordem divina metafórica 
é que não precisamos fazer o sacrifício do celibato, 
mas celebrar a vida. 
Pessoalmente, sempre acreditei 
que a melhor homenagem que se faz a uma divindade, 
se nela acreditamos, é celebrar — respeitando, amando, 
curtindo, cuidando — a vida, a natureza, a arte, o enigma de tudo. 
Mas nós, humanos, nem sempre espertos 
(embora a gente se ache, e muito), 
em vez de celebrar a passagem de ano, 
passamos boa parte dela nos enrolando. 
As providências excessivas, as compras, as comidas, 
as dívidas em dezenas de prestações... Os planos. 
Mas para que planos, quando o melhor é ter um só? 
Ser mais feliz, mais alegre, mais amoroso, mais honrado, mais pacífico. 
Mas a gente coloca aspectos prosaicos da vida acima de tudo: 
perder 10 quilos, tratar melhor a sogra, 
ser menos puxa-saco da sogra, da cunhada, da nora, do patrão. 
Ganhar mais dinheiro, 
o que nem sempre representa a conquista da felicidade 
ou algo que o valha, e por aí vai. 
Para um lado ou outro, para o sim ou para o não, 
nessa hora nos enchemos de preocupações, 
acumulamos propósitos, e nos amarguramos 
porque quase todos aqueles objetivos 
elencados na passagem do ano passado 
não foram cumpridos (e ainda por cima a gente sabia que ia ser assim). 
E daí? E daí que poderíamos aproveitar o momento 
para pensar no que realmente vale a pena. 
E o que vale a pena, 
não importam a biografia ou a latitude, é celebrar. 
Para tanto, basta que sejamos, em casa, no trabalho e na escola, 
um pouquinho mais agradáveis e menos tensos. 
E que, pelo menos, isso se manifeste 
na forma de um abraço vindo do fundo 
mais fundo do mais cansado — mas ainda amoroso e celebrante — coração. 
LYA LUFT é escritora
Revista VEJA - 05 de janeiro de 2011 
"A maturidade me permite: olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranquilidade, querer com mais doçura." 
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