quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

CINEMA

"O FILME FALADO" , Manuel de Oliveira

Tive o prazer de assitir e recomendo.
Mesmo com atraso, já que foi lançado em 2003,
Quem não viu deve fazê-lo.
Uma verdadeira aula de história, política, tolerância e civilidade.


“Um filme falado” afirma a sabedoria das palavras
A mais recente obra de Manoel de Oliveira

pode parecer uma defesa da civilização branca e ocidental.
Mas é possível chegar à conclusão oposta.
O filme alerta para a necessidade de que a ação
seja orientada pela sabedoria da fala.
Seja ela ocidental ou oriental.

O filme descreve um cruzeiro marítimo de Rosa Maria (Leonor Silveira)

e sua filha, a menina Maria Joana (Filipa de Almeida),
por cidades do Mar Mediterrâneo.
Além de mãe, Rosa também é historiadora.
O que possibilita que também o espectador aprenda
através dos lugares históricos por que passam as personagens.
Além disso, muitas das perguntas da menina Joana
são daquelas que nos esquecemos de nos fazer mais vezes:
O que são lendas? O que é mito? O que é contemporâneo?
O recurso também é uma forma de nos provocar
e transmitir o recado do diretor.
O problema é que o recado corre o risco de ser mal interpretado.
Vejamos porque.
O início do filme, por exemplo,

passa pelo perigo de ser considerado uma defesa da visão européia de mundo.
O nevoeiro que dificulta avistar os monumentos no porto de Lisboa
simboliza o desaparecimento no passado das glórias de um Portugal imperial. Muitos podem enxergar na cena
a saudade dos antigos navegadores portugueses.
Aqueles que mais do que descobrir terras distantes,
abriram caminho para os massacres de quem nelas vivia pelos europeus.
Essa idéia também está perigosamente combinada

com a cena da leitura da placa, em Marselha.
Trata-se de uma placa fixada no chão,
assinalando a chegada dos gregos à cidade,
sete séculos Antes de Cristo.
As palavras gravadas afirmam que a vinda dos gregos
é a inauguração da própria civilização por aquelas paragens
e ponto de partida de sua difusão pela Europa.
Parece a tese hoje bastante combatida de que fora
e antes da civilização ocidental há um vazio.
Na melhor das hipóteses, habitado por bárbaros.
Aprendendo com pessoas normais e atravessando idiomas
Essa impressão fica mais moderada

quando a viagem estende-se até o Egito,
o que desloca a viagem para o continente africano,
ainda que continue perto do berço mediterrânico da sociedade ocidental.
É nesta cena também que Rosa explica a Joana
que trabalho escravo foi utilizado na construção das enormes pirâmides.
E que, portanto, as maravilhas ali presentes custaram vidas humanas.
E que a civilização é assim mesmo, contraditória e cheia de erros.
Essa consideração melhora a situação do filme.
O passeio por Istambul também ajuda,
quando a mãe explica à filha que os muçulmanos
têm o direito a sua religião,tal como os cristãos.
Outro aspecto do filme é a recuperação da idéia da viagem

como momento de conhecer pessoas e outras tradições
e não apenas ruínas, monumentos e curiosidades.
O fato de ser historiadora permite a Rosa Maria
passear pelos lugares turísticos sem precisar integrar
os rebanhos de turistas levados por seus guias tagarelas.
Mais uma vantagem da professora é seu domínio do inglês e do francês.

Isso também lhe dá a chance saber o que ignora com pessoas normais,
como o pescador em Marselha, o padre ortodoxo na Grécia
e o ator português no Egito.
Sem isso, o viajante fica como a pequena Joana,
excluída de algumas conversas.
Aliás, é como ficaria o público de muitos lugares do mundo
se o filme não trouxesse legendas. Até do Brasil.
Pode parecer exagero, mas há um razoável distanciamento

entre o português de vogais fechadas e consoantes ásperas dos lusitanos
e o modo brasileiro de falar.
Influenciados pelos indígenas e negros,
expandimos as vogais e suavizamos as consoantes.
Essa situação dá ao filme de Manoel de Oliveira
um sabor diferente para nós, que falamos português do lado de cá do oceano.
É o que ocorre, por exemplo, na tradução da frase
"o vulcão deitou lava e cinzas", mais literária,
pela forma mais técnica presente em "o vulcão expeliu lava...".
Esquemas não dão conta da riqueza simbólica das línguas
A sucessão de paisagens dá lugar

a um debate travado durante um jantar no restaurante do navio.
Envolvidos nele estão o comandante da embarcação (John Malkovich)
e três senhoras. Uma é italiana (Stefania Sandrelli),
outra é grega (Irene Papas) e a terceira é francesa (Catherine Deneuve).
O capitão é norte-americano,
como calha a quem representa a nação que dirige o mundo.
Falando cada um em sua língua natal,
eles se entendem perfeitamente.
Discutem amor, profissões, sonhos, frustrações etc.
A conversa é inteligente e delicada,
que é dominada por mulheres cultas e européias.
O momento que nos interessa é aquele em que Maria e sua filha

juntam-se ao grupo, convidadas pelo capitão.
Desta vez, as mulheres poliglotas admitem não dominar o português.
Talvez, a cena tenha como objetivo mostrar a marginalização de Portugal
em relação ao restante da Europa.
Algo que outro português procurou fazer na literatura.
Estamos falando de "A Jangada de Pedra", de José Saramago.
De qualquer maneira, Maria se dispõe a falar inglês.
Fica clara a atual condição universal do idioma inglês.
O incidente leva Helena, a senhora grega,

a lamentar a situação de sua língua natal,
fazendo uma comparação com o idioma português.
Esta última é falada pelos que dominaram o mundo nos séculos 16 e 17,
diz ela, tal como os gregos o fizeram na Antiguidade.
Mas, a língua lusitana está presente em vários continentes,
ao passo que o uso do grego ficou restrito a sua terra de origem.
No entanto, Helena consola-se com o fato de que palavras de seu idioma
estão presentes em praticamente todas as línguas ocidentais.
E lembra alguns exemplos como "telefone" e "quilômetro".
não lembrou de dizer "cinema" e "televisão".
Esta conclusão alegra a todos,

mas também serve para nos lembrar que a língua
e outras esferas da vida cultural são muito mais ricas e dinâmicas
do que querem alguns esquemas.
Não há uma relação mecânica entre a economia, por exemplo,
e a criação simbólica presente na linguagem.
É verdade que o inglês impera porque impera
a dominação anglo-americana no planeta há uns 200 anos.
No entanto, nos próprios Estados Unidos, já surgiu o "spanglish".
Uma mistura entre espanhol e inglês
que apareceu devido à enorme presença dos hispânicos em território ianque.
O fenômeno já está assustando os conservadores norte-americanos.
Um deles chegou até escrever um livro,
preocupado com a corrupção dos valores ianques
por elementos culturais que lhes seriam estranhos.
Trata-se de "Quem Somos: Desafios à Identidade Nacional Americana",
de Samuel P. Huntington.
É a força-de-trabalho barata e superexplorada
vindas dos sul que se vinga de seus exploradores
"contaminando" sua poderosa língua.
Se a vingança dos debaixo em terras americanas
vai ficar apenas na ameaça cultural ainda é uma questão em aberto.
A ação sem palavras é bruta e cega
Voltando ao filme, seu trágico final

corre o perigo de provocar uma leitura equivocada das intenções do diretor.
Há o risco de que a destruição do navio apareça
como mais uma ação bárbara contra os "civilizados".
Uma condenação do fanatismo oriental,
incapaz de reconhecer o saber
e a moralidade superiores do Ocidente.
Por outro lado, durante o debate entre as três senhoras e o capitão,

a União Européia também é lamentada por seus próprios defeitos.
E nem poderia ser diferente.
Nobre e culta como aparenta ser,
a Europa foi palco para monstros como Hitler, Mussolini, Franco e Salazar.
A tão decantada Grécia foi governada por uma ditadura sanguinária
em plena década de 60.
Hoje, a união do Velho Continente acontece
em um ambiente cheio de racismo e intolerância.
Tudo sob os olhos conservadores de Tony Blair
e a careta fascista de Berlusconi.
Além disso, a cena final do filme

também permite uma conclusão crítica às pretensões ocidentais.
Trata-se da cara assustada do capitão ao contemplar a explosão.
O rosto congelado do norte-americano
enquanto passa o letreiro final parece dizer algo para o imperialismo ianque
e seus apoiadores na Europa.
O capitão olha assustado, como devem fazê-lo muitos norte-americanos
e europeus ao observar seus governos
colocando em marcha a máquina da guerra.
Combatendo aqueles que consideram selvagens, imorais e diabólicos,
Bush e aliados tornam o mundo bárbaro à sua própria imagem e semelhança.
O contrário disso é a relação bonita entre mãe e filha

através de palavras cheias de sabedoria, amor e respeito.
Elas simbolizam o que a humanidade pode ser.
A bola de fogo que destruiu essa possibilidade no filme
é uma ameaça concreta na vida real.
É preciso agir contra ela. Mas a ação sem palavras é bruta e cega.
Sem o verbo não há ação criativa contra o silêncio da destruição e do caos.
É o que ensinam textos antigos do Oeste e do Leste.
Sérgio Domingues integra a equipe do NPC e escreve

para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas

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