segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Crónica da Rapariga à Chuva

"Tantas dores. É estranha, a dor: custa menos do que se pensa,
a partir de certa altura a gente afasta-se dela,
deixa de pertencer-nos.
O que nos pertence é o vazio, uma indiferença esvaída".
5 de Ago de 2010


Há bocadinho fui espreitar à janela e estava uma rapariga lá em baixo, à chuva.
Isto às onze da manhã, a rua deserta e ela imóvel diante da agência de viagens,
sem gabardina sequer, à chuva. Cabelos curtos, sapatos de ténis,
os braços ao comprido do corpo, sozinha como uma estátua.
Não volto à janela porque não quero encontrá-la,
parece acusar-me de uma falta que desconheço,
afigura-se-me um remorso vivo. À chuva.
Não acaba, este inverno, esta solidão magoada, desconfortável.
Faz três anos andava eu à brochinha com o cancro,
sangue por todos os lados, a emagrecer, a sentir-me mal,
a teimar que era uma bactéria qualquer que trouxera do México.
Guadalajara, Guadalajara: deram-me a chave de oiro da cidade:
está lá para dentro, no seu estojo, numa gaveta de armário.
A chave de oiro de uma cidade não abre nada a não ser portas interiores:
e para além das portas interiores quartos vazios na sombra,
cada qual com a sua rapariga à chuva que aliás agora parou,
veio uma suspeita de sol.
Não tarda nada o sol vai-se e a chuva recomeça.
Até quando? Dá ideia que para sempre, nunca mais vai cessar de chover.
E a rapariga ali quieta, não à espera, não por teimosia,
ali apenas, se calhar para sempre também.
Vinte, vinte e cinco anos, sozinha.
Na agência de viagens iluminada empregadas a secretárias, cartazes:
Bermudas, Marrocos, Porto Rico.
O vento feio sacode árvores feias.
Os prédios feios, os automóveis feios, tudo feio.
Não me lembro de um inverno assim sujo, escuro, na minha cidade outrora cheia de luz.
Galhos depenados, nem um pombo, nem um pardal para amostra:
o que sucedeu aos pássaros?
Escrevo isto de luz acesa, com a morte na alma.
Quando estive doente ao menos havia sol, um sol inútil para mim mas sol.
Enfim, julgo que sol ou então eram aquelas lâmpadas todas na minha cara:
- De que vais morrer, António?
- De cancro
e as lâmpadas a aumentarem de intensidade na minha cara.
Tantas dores. É estranha, a dor: custa menos do que se pensa,
a partir de certa altura a gente afasta-se dela, deixa de pertencer-nos.
O que nos pertence é o vazio, uma indiferença esvaída.
Levanto-me da mesa: a rapariga foi-se embora não imagino para onde,
deixou-me sozinho neste apartamento.
O que faço sem ela ali em, baixo, junto à agência de viagens,
Bermudas, Marrocos, Porto Rico?
Fotografias de gente na praia, camelos, palmeiras.
Aqui são tipuanas magras, atormentadas, a água cinzenta a escorrer para as valetas,
ramos com uma única folha, não verde, amarela, quase a soltar-se,
ramos sem nenhuma folha, tortos, magros.
Não fui às Bermudas nem a Marrocos nem a Porto Rico, que conheço eu do mundo?
Janelas fechadas, ninguém a pendurar roupa nas varandas.
Martelam no andar de cima, talvez estejam a crucificar alguém.
Pela aflição dos galhos percebe-se que o vento aumenta.
Daqui a nada estou no restaurante do costume: o
empregado empresta-me um jornal desportivo,
imensos guarda-chuvas numa espécie de vaso junto à porta,
a máquina de vender cigarros a zumbir.
Ligo a ternura eléctrica do calorífero que queima mais do que aquece e me frita a perna.
A ementa não varia, como sempre a mesma coisa: tanto me faz.
Pressa de voltar aqui a fim de continuar a escrever.
Leio a última frase e avanço aos solavancos, este é um ofício esquisitíssimo.
Quando lerem nem sonham o que penei nas frases.
Quer dizer, espero que nem sonhem o que penei nas frases.
Tem de parecer fluido, fácil.
Que dia é hoje? Sei lá, tanto faz. Tanto faz? Tanto faz.
Um relâmpago e logo a seguir sons de penedos enormes a caírem uns por cima dos outros.
Se tivesse quinze anos outra vez jantava com os meus pais, os meus irmãos.
Tenho saudades disso, de fazer parte de uma família.
Esperar, aflitinho, diante do quarto de banho fechado.
Se batiam à porta avisava-se
- Está gente
num berro que os azulejos ampliavam.
Pode parecer ridículo mas adorava voltar a fazer cocó em Benfica.
A banheira com patas de leão, o esquentador pré-histórico,
os perfumes da minha mãe numa mesa, o cheiro da laca dela,
a brilhantina do meu pai, o pente sempre gorduroso,
a escova com que alisava o cabelo apertando-o nas têmporas.
Era o único de nós que fazia a barba.
Acho que também não visitou as Bermudas nem Marrocos nem Porto Rico.
Saía para o hospital de manhã, voltava ao fim do dia e tudo cheirava a cachimbo.
Achava esquisito que tratasse o meu avô por pai, pai era ele, o meu avô era avô.
Esse fazia a barba também. O mundo inteiro fazia a barba menos eu.
Sinto a falta da rapariga lá em baixo, à chuva,
preocupo-me com o que lhe terá acontecido.
Nem quero pensar que a água das valetas a levou,
de mistura com as folhas caídas.
ANTONIO LÔBO ANTUNES

2 comentários:

  1. Com grande prazer li na Visão a Crónica da Rapariga à Chuva do António Lobo Antunes.
    Li-a aqui outra vez, com o mesmo prazer.

    Abraço de Düsseldorf!

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  2. Sempre encanta-me Düsseldorf, sempre. Um dia vou conhece-la.
    Obrigada pelo seu carinho de sempre.
    Bjs da Bahia

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