JÁ SOMOS O ESQUECIMENTO QUE SEREMOS* por May Parreira e
Ferreira
Você me ablaça, o neto pergunta na hora de dormir. Resistir,
quem há de. Ele fez quatro anos, ainda está no tlocaletlas. Já sinto saudade do
amanhã, das caretas, dos carinhos. Sei que não vou lembrar daqui a tanto.
Talvez uma ou outra frase, um ou outro caso. A memória é falsa, bate e falha
sem distinção de mérito. Quero recordar o que não lembro, coisas diferentes da
história recontada. Será sempre que antes era melhor, pergunto assustada ao ver
fotos de um passado recente. São quinze ou vinte anos que passaram ontem. Estou
em crise de memória. Não uma memória que penso não ter, mas uma que talvez
nunca tenha tido. Os tempos hoje em dia passam muito rápido e nos põe na
calçada de caneca e canudinho. Entre lá e cá existe um limbo de felicidade, de
coisa cheirosa, de gente alegre, gente viva. Minha filha com três anos recitava
batatinha espalama pelo chão, a menina quando dorme, chupa o didon. Eu me
lembro. Lembro também quando ela perguntou, o que acontece se o céu quebrar,
mamãe. De quando sob a ameaça de o chinelo vai cantar na sua bunda, entrei no
quarto e ela com o chinelo no ouvido pedia, canta chinelo, canta chinelo. Como
essas, passei quinquilhões de coisitas
agradáveis, engraçadas. Onde estarão elas. Será que um dia voltarão
grandílocas? Estarei condenada às repetições das mesmas desnecessidades? Se não
escrever agora, daqui a trinta anos, como saberei que estava feliz neste exato
momento. Como saberei se essa mente traiçoeira não estava ocupada por estados
tortuosos. O que é o tempo, esse que nos leva, nos adoça, nos tortura. Na foto,
que encontrei sem procurar, a mata serrana, a roupa florida, cabelão solto,
sentia será o quê. Estaria eu feliz, ou será que angustiada com alguma
insolvência amorosa. Como vou saber. A pessoa da foto tem o mesmo rosto que eu,
dez ou doze quilos mais magra, parece comigo. Bastante. Mas não sou eu. Eu sou
outra hoje. Eu sou ainda. Mas já não lembro.
* Frase de Jorge Luis Borges em AQUI HOJEAqui. Hoje.
Jorge Luis
Borges
Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
e que foi o ruivo Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas
do princípio e do término, o esquife,
a obscena corrupção e a mortalha,
os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se aferra
ao mágico sonido de teu nome:
penso com esperança naquele homem
que não saberá que fui sobre a Terra.
Embaixo do indiferente azul do céu
esta meditação é um consolo.
A poeira elementar que nos ignora
e que foi o ruivo Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas
do princípio e do término, o esquife,
a obscena corrupção e a mortalha,
os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se aferra
ao mágico sonido de teu nome:
penso com esperança naquele homem
que não saberá que fui sobre a Terra.
Embaixo do indiferente azul do céu
esta meditação é um consolo.
(Tradução: Charles Kiefer)
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