sexta-feira, 24 de agosto de 2012



 
JÁ SOMOS O ESQUECIMENTO QUE SEREMOS*  por May Parreira e Ferreira
Você me ablaça, o neto pergunta na hora de dormir. Resistir, quem há de. Ele fez quatro anos, ainda está no tlocaletlas. Já sinto saudade do amanhã, das caretas, dos carinhos. Sei que não vou lembrar daqui a tanto. Talvez uma ou outra frase, um ou outro caso. A memória é falsa, bate e falha sem distinção de mérito. Quero recordar o que não lembro, coisas diferentes da história recontada. Será sempre que antes era melhor, pergunto assustada ao ver fotos de um passado recente. São quinze ou vinte anos que passaram ontem. Estou em crise de memória. Não uma memória que penso não ter, mas uma que talvez nunca tenha tido. Os tempos hoje em dia passam muito rápido e nos põe na calçada de caneca e canudinho. Entre lá e cá existe um limbo de felicidade, de coisa cheirosa, de gente alegre, gente viva. Minha filha com três anos recitava batatinha espalama pelo chão, a menina quando dorme, chupa o didon. Eu me lembro. Lembro também quando ela perguntou, o que acontece se o céu quebrar, mamãe. De quando sob a ameaça de o chinelo vai cantar na sua bunda, entrei no quarto e ela com o chinelo no ouvido pedia, canta chinelo, canta chinelo. Como essas, passei  quinquilhões de coisitas agradáveis, engraçadas. Onde estarão elas. Será que um dia voltarão grandílocas? Estarei condenada às repetições das mesmas desnecessidades? Se não escrever agora, daqui a trinta anos, como saberei que estava feliz neste exato momento. Como saberei se essa mente traiçoeira não estava ocupada por estados tortuosos. O que é o tempo, esse que nos leva, nos adoça, nos tortura. Na foto, que encontrei sem procurar, a mata serrana, a roupa florida, cabelão solto, sentia será o quê. Estaria eu feliz, ou será que angustiada com alguma insolvência amorosa. Como vou saber. A pessoa da foto tem o mesmo rosto que eu, dez ou doze quilos mais magra, parece comigo. Bastante. Mas não sou eu. Eu sou outra hoje. Eu sou ainda. Mas já não lembro.
* Frase de  Jorge Luis Borges em AQUI HOJE


Aqui. Hoje.

Jorge Luis Borges
Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
e que foi o ruivo Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas
do princípio e do término, o esquife,
a obscena corrupção e a mortalha,
os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se aferra
ao mágico sonido de teu nome:
penso com esperança naquele homem
que não saberá que fui sobre a Terra.
Embaixo do indiferente azul do céu
esta meditação é um consolo.

(Tradução: Charles Kiefer)

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