segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Betty Milan e a Psicanálise

Penso que a forma de olhar faz a diferença,
Penso que este mesmo olhar nos faz singulares,
Mas também penso que é preciso poder olhar,
E que a psicanálise nos oferece essa possibilidade,
muitas vezes pouco exercitada. 
Betty Milan, a quem admiro imensamente,
insiste que só o entendimento da nossa história possibilita-nos renovação e "vida".

O GOSTO DA SURPRESA
                            Betty Milan



Nada é melhor do que se surpreender, olhar o mundo com olhos de criança. Por isso as pessoas gostam de viajar.
Nem o trânsito, nem a fila no aeroporto,
nem o eventual desconforto do hotel são empecilhos neste caso.
Só viajar importa, ir de um para outro lugar
e se entregar à cena que se descortina. Como aliás, no teatro.
O turista compra a viagem baseado nas garantias
que a agência de turismo oferece,
mas se transporta em busca de surpresa.
Porque é dela que nós precisamos mais.
Isso explica a célebre frase “navegar é preciso, viver não”,
erroneamente atribuída a Fernando Pessoa, já que data da Idade Média.


Agora, não é necessário se deslocar no espaço
para se surpreender e se renovar.
Olhar atentamente uma flor, acompanhar o seu desenvolvimento,
do botão à pétala caída, pode ser tão enriquecedor
quanto visitar um monumento histórico.


Tudo depende do olhar.
A gente tanto pode olhar sem ver nada quanto se maravilhar,
uma capacidade natural na criança e que o adulto precisa conquistar, suspendendo a agitação da vida cotidiana
e não se deixando absorver por preocupações egocêntricas.
Como diz um provérbio chinês,
" a lua só se reflete perfeitamente numa água tranquila" .


O que nós vemos e ouvimos depende de nós.
A meditação nos afasta do clamor do cotidiano e nos permite,
por exemplo, ouvir a nossa respiração.
Quem escuta com o espírito e não com o ouvido,
percebe os sons mais sutis.
Ouve o silêncio, que é o mais profundo de todos os sons,
como bem sabem os músicos.
Numa de suas músicas, Caetano Veloso diz
que “só o João (Gilberto) é melhor do que o silêncio”.
Porque o silêncio permite entrar em contato com um outro eu,
que só existe quando nos voltamos para nós mesmos.


Há milênios, os asiáticos, que valorizam a longevidade,
se exercitam na meditação, enquanto nós, ocidentais,
evitamos o desligamento que ela implica.
Por imaginarmos que sem estar ligados não é possível existir,
ignoramos que o afastamento do circuito habitual
propicia uma experiência única de nós mesmos,
uma experiência sempre nova.
Desde a Idade Média, muitos séculos se passaram.
Mas o lema dos navegadores continua atual.
Surpreender-se é preciso.
A surpresa é a verdadeira fonte da juventude,
promessa de renovação e de vida.

REVISTA VEJA, 29/09/2010

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