sábado, 3 de abril de 2010

A obra de Freud em versões dos sonhos
Duas novas traduções feitas a partir do original alemão e a revisão de uma edição clássica oferecem ao leitor brasileiro algo de que ele estava privado:
o prazer de ler, em bom português, aquilo que o pai da psicanálise realmente escreveu
Renato Mezan





Divulgação
PENSAMENTO E ESTILO
Freud: ideias que mudaram o século XX por sua força e também pela propriedade com que ele as expressou
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Trecho: Obras completas
Se alguém nos pedir uma lista das pessoas que mais marcaram o século XX,
é certo que dela constará Sigmund Freud:
não apenas como inventor da psicoterapia,
mas como autor de descobertas que contribuíram com impacto inestimável
para moldar a imagem que o homem ocidental tem de si mesmo.
Como suas ideias alcançaram tamanha divulgação?
Além da originalidade e do poder libertador que encerram,
graças à maneira como foram expressas.
Freud era excelente escritor,
capaz de se servir de uma vasta gama de procedimentos literários.
Dedicou-se com afinco, também, ao "movimento psicanalítico",
ou seja, à formação de discípulos – em que o estudo de seus escritos é essencial,
já que constitui a base da prática clínica.
Nas primeiras décadas do século XX,
o fato de esses textos estarem em alemão não era obstáculo.
A maioria dos analistas vinha da Europa Central,
e o alemão era então uma das principais línguas científicas do mundo.
Naturalmente, o interesse crescente pela nova disciplina
suscitou traduções para o inglês, o francês e o espanhol.
Mas várias delas foram supervisionadas pelo próprio Freud,
que era fluente nessas línguas.
Apesar de algumas imprecisões conceituais e variações de terminologia,
essas versões atingiram seu objetivo:
oferecer uma visão geral da psicanálise e difundi-la na Europa e nas Américas.
Uma coisa, porém, é contornar um punhado de incorreções.
Outra, muito diferente, é ter de se ver com um texto eivado de equívocos
– como a primeira Edição Standard Brasileira da Imago,
durante muito tempo a única tradução disponível no país.
Voltar à fonte e oferecer um Freud o mais fiel possível ao original
é o que se propõem duas novas traduções,
cujos primeiros volumes chegam agora às livrarias
– pela Companhia das Letras, a cargo de Paulo César de Souza,
e pela L&PM, por Renato Zwick.
Somando-se o trabalho em progresso, já faz alguns anos,
de revisão da Standard, sob a direção de Luiz Alberto Hanns,
o leitor brasileiro passa assim a dispor de três versões respeitáveis da obra de Freud.
As dificuldades que vitimaram o texto de Freud no Brasil
tiveram origem no tumulto do século passado.
O nazismo obrigou muitos analistas judeus a deixar a Europa Central;
e o término da II Guerra, que coincidiu com a morte de Freud,
fez o centro de gravidade do mundo analítico
se deslocar para a Inglaterra e os Estados Unidos e,
em menor medida, para a França e a Argentina.
Tornou-se, então, urgente estabelecer uma versão dos escritos freudianos
que servisse de referência para a comunidade analítica internacional.
Essa foi a tarefa do inglês James Strachey,
e resultou nos 24 volumes da Standard Edition
of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud,
um monumento científico e literário cujo papel na preservação
e difusão do pensamento do mestre dificilmente pode ser exagerado.
A partir dela, Freud foi traduzido para o português;
e, nas páginas da Edição Standard Brasileira, muitos brasileiros estudaram a psicanálise.
Ocorre que essa tradução foi realizada com critérios pouco científicos.
Há inúmeros erros no emprego do vocabulário técnico
e na própria compreensão do inglês.
Seus responsáveis tinham boa vontade, mas não talento literário.
Produziram um texto pesado e deselegante, antípoda ao estilo de Freud.
Na década de 80, esses problemas começaram a ser percebidos,
e a Editora Imago buscou remediá-los,
emendando as passagens mais problemáticas.
Logo, porém, tornou-se patente que o melhor
era substituir o texto por uma tradução correta a partir do original,
e o analista e professor de alemão Luiz Alberto Hanns
foi convidado para coordenar o empreendimento.
Desde 2006, sua equipe já publicou três volumes,
e no momento prepara um quarto.
Nos anos 90, o germanista Paulo César de Souza,
que, com a analista paulistana Marilene Carone,
fora dos primeiros a levantar objeções à Standard Brasileira,
traduziu alguns textos que circularam intramuros,
em publicações da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Isso porque só em 2009 a obra de Freud cairia em domínio público:
até então, os direitos autorais pertenciam à Imago.
Como esse obstáculo deixou de existir,
a Companhia das Letras e a L&PM podem, agora, lançar suas versões.
São projetos diferentes, que, no ver deste autor, se complementam.
A edição da L&PM, em formato de bolso,
visa a apresentar Freud a um público mais amplo.
É bem cuidada, trazendo prefácios específicos para cada volume
e um útil "ensaio bibliográfico" assinado pelos psicanalistas Paulo Endo e Edson Sousa.
Já a revisão da Standard e a edição da Companhia têm escopo diverso.
Seu alvo é primariamente a comunidade profissional,
e tanto Luiz Alberto Hanns quanto Paulo César de Souza
dedicaram muito tempo e reflexão à tarefa específica de traduzir Freud.
Há décadas, estudam-se em nosso país os textos freudianos.
Foi se decantando um vocabulário técnico,
que varia segundo as escolas psicanalíticas
e cujo emprego denota opções teóricas
e clínicas dentro da psicanálise contemporânea.
Ambos os tradutores têm consciência desses fatos,
e não pretendem substituir o recurso ao original,
indispensável a partir de certo patamar de estudo.
Suas escolhas são explicitadas em textos programáticos
– as de Hanns na Introdução ao Volume 1 da nova edição da Imago,
que cobre escritos dos anos 1911-1915,
e as de Souza na sua tese de doutorado, As Palavras de Freud,
que a Companhia das Letras publica simultaneamente aos três tomos
que abrem sua coleção (o 10, o 12 e o 14, contendo textos que vão de 1911 a 1920).
As decisões opostas quanto à melhor versão de alguns conceitos importantes,
como Trieb e Verdrängung – "pulsão" e "recalque" para Hanns,
"instinto" e "repressão" para Souza –, suscitarão discussões,
e não é difícil prever que virão a ter lugar de destaque
nos colóquios e publicações dos psicanalistas.
Mas os tradutores não pretendem impor suas opções:
o louvável é que ambos as justificam com razões de peso,
levando em conta os sentidos dos termos na língua alemã,
o uso que Freud faz deles (nem sempre uniforme, diga-se),
as diferenças semânticas entre os vocábulos germânicos e portugueses,
a fluência das frases em que comparecem
e outros aspectos necessários a uma tradução exata e elegante.
A principal diferença é que Souza trabalha sozinho,
tendo como foco "a fidelidade ao original, sem interpretações
ou interferências de comentaristas ou teóricos posteriores da psicanálise".
Já Hanns dá grande importância ao estudo passado e presente de Freud.
Isso o leva a ponderar as implicações de substituir termos de uso corrente
e insistir em mudança apenas quando as expressões consagradas
podem deturpar o pensamento de Freud
(por exemplo, traduz Versagung por "impedimento",
já que "frustração", para o falante do português, sugere decepção,
que tem pouca ou nenhuma relevância na concepção freudiana desse fato psíquico).
Outra decorrência dessas diferenças aparece nas notas explicativas:
as de Souza são pouco numerosas, até porque em sua tese
ele examina com vagar os problemas em pauta
(seu livro, aliás, se tornará indispensável para quem quiser estudar Freud a fundo).
Já a edição de Hanns traz um imponente aparelho crítico:
os comentários de Strachey, abundantes notas do editor e uma novidade excelente
– pequenos parágrafos de analistas brasileiros sobre alguns termos ou passagens, mostrando como eles foram compreendidos pelas diversas orientações pós-freudianas.
Fundamental, porém, é o que as três edições vertidas diretamente do alemão
têm em comum: o fato de oferecerem ao público brasileiro algo precioso,
e de que ele estava privado – o deleite de ler, em português,
o que Freud realmente escreveu.


Renato Mezan é psicanalista, professor titular da PUC-SP e autor de vários livros, entre os quais Freud, Pensador da Cultura (Companhia das Letras) e Escrever a Clínica (Casa do Psicólogo).

Um comentário:

  1. Freud está tão interiorizado na nossa cultura que nem chegamos já a ter consciência disso.
    Fico curioso sobre essa edição.
    Obrigado

    Fique bem!

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