quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

ANTONIO LÔBO ANTUNES

Dizem que somos fiéis aqueles que admiramos!
Ele certamente conseguiu "vários níveis de emoção em cada frase
e concentrar num nada o mundo todo".

Vacilantes rostos do passado

O sorriso do meu avô surdo que poisava em nós

sem nos tocar e se ausentava num abismo de mudez
5:51 Quinta-feira, 21 de Jan de 2010

Vacilantes rostos do passado: os meus avós, os meus tios,

a minha bisavó, já tontinha, um militar com as tripas nas mãos
a olhar-me na picada, numa atitude de oferta.
Silenciosos verões, a serra da Estrela que continua a fazer-me sonhar,
o céu da noite sobre as ramadas dos pinheiros.
Cheiros da Beira Alta que só a mim pertencem,
da roupa engomada nas gavetas e o do incenso, na igreja,
quando era menino do coro e as flechas de São Sebastião,
num altar lateral, me atormentavam.
Riscos encarnados a imitarem sangue no corpo de pasta.
A minha embirração por São Luís Gonzaga,
possuidor de todas as virtudes que eu não tinha:
obediência aos pais, bom aluno, simpático até ao enjoo e,
segundo a pagela, esmoler.
Ainda hoje a palavra esmoler me provoca uma reacção
no género da que me transtorna quando
uma faca raspa o fundo de um prato ou o giz,
na escola, guinchava na ardósia.
Esmoler não lembra ao diabo
mas lembrou ao biógrafo de São Luís Gonzaga,
que devia ter sido fuzilado no berço
antes de ter tempo de crescer e escrever aquilo.
O problema das crianças é que se tornam adultos:
os gatos, por exemplo, são sempre gatos, que alívio.
E os cavalos de carrossel não mudam nunca.
Saudades do carrossel em forma de oito:
- Viaje no oito que viaja melhor
berrava o altifalante, e atrás do microfone um homem gordo,

de bexigas, a piscar o olho às pequenas jeitosas
enquanto limpava o suor das bochechas com um lenço gigantesco,
esse não um vacilante rosto do passado,
uma cara pavorosamente nítida,
de anel do tamanho de uma algema no dedo.
Silenciosos verões durante o dia,
os insectos do crepúsculo contra a lanterna do alpendre,
asas queimadas crepitando.
O sorriso do meu avô surdo que poisava em nós
sem nos tocar e se ausentava num abismo de mudez.
O bolso do casaco dele cheio de palitos
que não sei para que lhe serviam, não os punha na boca.
Depois de morrer o casaco, de linho branco,
permaneceu que tempos no cabide.
Era bonito e triste, de uma melancolia amável.
Não me ligava nenhuma, dava ideia de não ligar a ninguém.
Sorria apenas.
Vacilantes rostos ou sombras?
Isto parece a introdução do Fausto de Goethe, vou mudar a agulha.
Lembro-me da minha mãe cantar,
lembro-me de parecer nossa irmã, lembro-me de eu a querer escrever.
Com cinco ou seis anos copiava coisas dos jornais e considerava-as minhas. Fazia versos.
Por volta dos treze anos comecei a entender que não tinha talento
seguiram-se séculos e séculos de prosa.
Na altura ainda fazia essas diferenças.
As prosas eram, evidentemente, horríveis, tinha consciência disso,
mas tinha também a certeza inabalável, de cimento,
que iria fazer o que nunca, antes de mim, se fizera.
É esquisito que ainda hoje não pasme com a minha convicção de garoto.
Como Bocage ao acabar de dizer um poema:
- Isto é meu, isto não morre.
Pois, mas morreu ele.

Claro que nessa altura não me preocupava o que preocupava Balzac
e ainda me preocupa hoje: a forma interna,
as possibilidades internas do material,
a administração das palavras no interior do texto,
mas não vou aborrecer as pessoas com problemas técnicos.
Quero que o canalizador me ponha a torneira a funcionar,
não me interessa como o faz.
E a maior parte dos leitores exigem resultados,
o meio de os atingir é-lhes indiferente, enquanto a mim,
por dever de ofício, o que me atrai num livro é desmontá-lo,
ver o por dentro, os parafusos, as rodas dentadas,
os amortecedores (amortecedores é fundamental)
as bielas, a tralha escondida que põe a funcionar tudo aquilo.

Quando John Cheever escreve "numa boa página de prosa ouve-se chover"
a questão é como se chegou a isso, que milagres não há.
De que maneira treinar a cabeça e a mão,
apagar da memória tudo o que não faz parte do livro,
aprender, até a tornar instintiva,
a fazer a triagem do que nos irá servir e jogar fora resto.
Que longo caminho até chegar aqui.
E, ao mesmo tempo, a sensação de que estamos sempre a começar.
Queridos, vacilantes rostos do passado.
Daqui a nada eu, passado igualmente, na memória dos outros:
- Como era o António, que não me recordo bem?
Casaco e palitos não tinha, sorriso pouco, quase não falava.

Sujeitava-se mal à ordem das coisas.
Tentou, a vida inteira, E a maior parte dos leitores exigem resultados, o meio de os atingir é-lhes indiferente, enquanto a mim, por dever de ofício, o que me atrai num livro é desmontá-lo, ver o por dentro, os parafusos, as rodas dentadas, os amortecedores (amortecedores é fundamental)
as bielas, a tralha escondida que põe a funcionar tudo aquilo. Quando John Cheever escreve "numa boa página de prosa ouve-se chover" a questão é como se chegou a isso, que milagres não há. De que maneira treinar a cabeça e a mão, apagar da memória tudo o que não faz parte do livro, aprender, até a tornar instintiva, a fazer a triagem do que nos irá servir e jogar fora resto. Que longo caminho até chegar aqui. E, ao mesmo tempo, a sensação de que estamos sempre a começar. Queridos, vacilantes rostos do passado. Daqui a nada eu, passado igualmente, na memória dos outros:
- Como era o António, que não me recordo bem?
Casaco e palitos não tinha, sorriso pouco, quase não falava.

Sujeitava-se mal à ordem das coisas.
Tentou, a vida inteira, conseguir vários níveis de emoção em cada frase
e concentrar num nada o mundo todo.
O resto considerava-o inútil.
Um dia morreu. Deixou parágrafos.
Na esperança que as asas queimadas dos insectos do crepúsculo contra a lanterna do alpendre crepitem não um segundo mas a eternidade inteira.
Na esperança, não. Seguro disso, enquanto o céu da noite
continuará sobre as ramadas dos pinheiros,
no lugar onde foi mais feliz.

Um comentário:

  1. Oi Carmen

    Eu tenho no blogue jim-viajantedotempo, um pensamento meu que diz

    "A morte é um traço de união entre um instante, a vida, e a eternidade".

    Mas A.L.A. tem razão no que diz quanto à morte do pai, mas não só o pai também a mãe.
    É como fenecer a arvore que deu origem aos rebentos, deixando-os desamparados.

    Paz e Luz no seu caminho

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