Releio a vida, a poesia, o amor!
TRECHOS DA ÚLTIMA ENTREVISTA
O suplemento Idéias, do Jornal do Brasil, de 22 de agosto de 1987
(cinco dias após a morte de Drummond), apresentou em suas páginas centrais
trechos da última e exclusiva entrevista do poeta mineiro
ao jornalista Geneton Moares Neto.
Dezessete dias antes de dar adeus ao mundo,
Carlos Drummond de Andrade confessava que tinha um único e prosaico medo:
o de escorregar, levar uma queda boba e quebrar o fêmur.
A confissão é exemplar do temperamento do maior poeta brasileiro.
Quem batesse à porta do apartamento 701 do prédio de número 60
da Rua Conselheiro Lafayette, em Copacabana,
à procura de declarações grandiloqüentes sobre a vida,
a arte e a eternidade iria se deparar
com um homem teimosamente prosaico,
despido de todo e qualquer traço de vaidade e orgulho
diante de uma obra que começou a brotar em Itabira
para o mundo em 1918, ano da publicação de um poema chamado Prosa,
num jornalzinho que só saiu uma vez.
O Drummond que se revela de corpo inteiro na longa entrevista
que nos concedeu em duas sessões - nos dias 20 e 30 de julho -
é um homem desiludido com o mundo. Agnóstico.
Confessadamente solitário. Cético diante da posteridade.
Injustamente rigoroso no julgamento da obra que produziu.
Tinha uma íntima esperança: queria ver a filha única,
a escritora Maria Julieta, recuperada da doença.
Tanto é que tentou adiar a entrevista para ‘quando as coisas melhorassem’.
Não melhoraram. Os azares de agosto desabaram
sobre os ombros frágeis do poeta.
O câncer ósseo levou Maria Julieta.
E tirou do poeta a vontade de viver.
A imagem do Drummond cambaleante
nas alamedas do cemitério no enterro da filha única
era um mau presságio.
Menos de uma semana antes da morte da filha, Drummond,
enfim, cedera à nossa insistência em obter um longo depoimento
- não sem, antes, brindar-nos com o dúbio qualitativo de ‘implacável’.
A entrevista fazia parte do projeto de publicação
de um livro de depoimentos sobre os 60 anos
do célebre poema No meio do caminho, no próximo ano.
Drummond, naturalmente, não concordava nem de longe
com a idéia de homenagear a data.
‘Não vale a pena; a data não merece consideração alguma’.
Mas, provocado, falou como em poucas vezes:
o depoimento, transcrito, rendeu cerca de mil linhas datilografadas.
Um trecho - que antecipava a decisão do poeta de deixar de escrever
- foi publicado no Idéias há duas semanas.
Depois da morte da filha,
Drummond tentou sustar a publicação da entrevista
porque a considerava ‘muito festiva’.
Acabou permitindo, sob a condição de que o editor avisasse
que ela tinha sido concedida antes da morte de Maria Julieta.
Em poucos dias, a entrevista transformou-se
na cerimônia de adeus do maior poeta brasileiro.
Mais do que nunca, neste depoimento,
Drummond insiste que será esquecido em pouco tempo.
Não será. E não terá sido por acaso que o clima no seu enterro
não era propriamente de comoção.
Porque todo mundo ali sabia que, nos versos, Drummond vive.
E, na morte, encontrou o que tanto queria: a paz.
No dia 5 de agosto morre a mulher que mais amou,
sua amiga, confidente e filha Maria Julieta.
Desolado, Drummond pede a sua cardiologista
que lhe receite um “infarto fulminante”.
Apenas doze dias depois, em 17 de agosto de 1987,
Drummond morre numa clínica em Botafogo, no Rio de Janeiro,
de mãos dadas com Lygia Fernandes,
sua namorada com quem manteve um romance paralelo ao casamento
e que durou 35 anos (Drummond era 25 anos mais velho
e a conheceu quando ele tinha 49 anos).
Era uma amor secreto, mas nem tanto.
Lygia contaria ao jornalista Geneton Moares Neto
(a quem Drummond concedeu sua última entrevista)
que “a paixão foi fulminante”.
O MEDO
“A maior chateação da velhice é você ficar privado
do uso completo de suas faculdades.
A pessoa velha tem de moderar o ritmo do andar,
porque, do contrário, o coração começa a pular.
Não pode fazer grandes excessos.
Não tomar um pileque de vez em quando
porque isso provocará consequências maléficas.
Ela tem de ser moderada até nos amores.
“O medo que tenho é levar uma queda, me machucar,
quebrar a cabeça, coisas assim, porque, na idade em que estou,
a primeira coisa que acontece numa queda é a fratura do fêmur.
Isso eu receio”.
“...Cantaremos o medo da morte/ depois morreremos de medo/ e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”
(Congresso Internacional do Medo - trecho)
O PAÍS
“Eu lamento que haja pouco consumo de livro no Brasil.
Mas aí é um problema muito mais grave.
É o problema da deseducação, o problema da pobreza
- e, portanto, o da falta de nutrição e da falta de saúde.
Antes de um escritor se lamentar porque não é lido
como são lidos os escritores americanos ou europeus,
ele deve se lamentar de pertencer a um país
em que há tanta miséria e tanta injustiça social”.
“Precisamos descobrir o Brasil/ Escondido atrás das florestas/
com a água dos rios no meio/ o Brasil está dormindo, coitado”
(Hino Nacional - trecho)
A SOLIDÃO
“Se eu me sinto solitário?
Em parte, sim, porque perdi meus pais e meus irmãos todos.
Nós éramos seis irmãos.
E, em parte, porque perdi também amigos da minha mocidade,
como Pedro Nava, Mílton Campos, Emílio Moura,
Rodrigo Melo Franco de Andrade, Gustavo Capanema
e outros que faziam parte da minha vida anterior, a mais profunda.
Isso me dá um sentimento de solidão.
Por outro lado, a solidão em si é muito relativa.
Uma pessoa que tem hábitos intelectuais ou artísticos,
uma pessoa que gosta de música, uma pessoa que gosta de ler
nunca está sozinha. Ela terá sempre uma companhia:
a companhia imensa de todos os artistas,
todos os escritores que ela ama, ao longo dos séculos”.
“Precisava de um amigo/ desses calados, distantes,
/ que lêem verso de Horácio/ mas secretamente influem
/ na vida, no amor, na carne/ Estou só, não tenho amigo
/ E a essa hora tardia/ como procurar um amigo?”
(A bruxa - trecho)
Postado in MEMÓRIA VIVA